Lei antiga, olhar novo

A Lei de Cotas está em vigor há 26 anos. Na verdade, ela é o art. 93 da Lei 8.213/1991 mas, pela sua importância, é considerada lei.

Ela estabelece percentuais para contratação de pessoas com deficiência e reabilitados do INSS, por empresas privadas, com 100 empregados ou mais.

Como ela não define o que é deficiência, só passou a ser fiscalizada depois de 1999, com o Decreto 3.298, que define o que é deficiência e incapacidade e, portanto, possibilitou sua aplicação. As definições desse Decreto foram ampliadas em 2004, pelo Decreto 5.296.

A Lei de Cotas é uma ação afirmativa, que possibilita o ingresso no mercado formal, em igualdade de condições, garantindo o Direito ao Trabalho para pessoas que foram sistematicamente preteridas, ao longo do tempo, por desconhecimento, insegurança, medo ou preconceito.

Quando a Lei de Cotas foi promulgada, o conceito de ação afirmativa era praticamente desconhecido no Brasil e ela foi vista, inicialmente, como uma imposição, que forçou as empresas a contratar pessoas que elas consideravam “um peso”, “uma despesa que não gera valor para o negócio”. Como resultado, muitas vezes recorreram a medidas legais para se isentarem desta obrigação. Isso ainda acontece, mas já diminuiu.

O que está fazendo as empresas mudarem a sua opinião?

As respostas são várias; vou citar algumas, que considero as mais relevantes.

 

Mudanças no marco legal

A principal é a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência/CDPD, que considera a temática da inclusão de pessoas com deficiência como integrante dos Direitos Humanos e não mais como “favor”.

A CDPD foi incorporada à Constituição Federal do Brasil pelo Decreto legislativo 186/2008, com equivalência de Emenda Constitucional. Posteriormente, em 2009, o Decreto Executivo 6.949 promulgou a CDPD e seu Protocolo facultativo.

Em 2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), de n.o 13.146, possibilitou a operacionalidade da CDPD, ao “traduzir” princípios e diretrizes em ações, com prazos e penalidades.

Até agora, o Brasil é o único país que ratificou a CDPD com status de Constituição Federal e também é o único que tem uma lei que viabiliza sua aplicação – até onde sei. Estas são conquistas relevantes, que merecem ser conhecidas e comemoradas, pois concernem a todos nós– afinal, trata-se de Direitos Humanos!

 

Mudanças em referências internacionais

Destaco os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que trazem uma perspectiva sistêmica, interligando as dimensões social, econômica e ambiental e que estarão em vigor de 2015 a 2030.

Os ODS propõem um plano ousado para acabar com a pobreza e reduzir as desigualdades, entre outros temas. São 17 Objetivos e 169 metas, que se caracterizam pelo olhar da inclusão, da equidade e da implementação efetiva dos Direitos Humanos para grupos vulneráveis.

Fundamentados no imperativo ético: “Ninguém será deixado para trás”, os ODS mencionam as pessoas com deficiência em diversos Objetivos e respectivas Metas. O Brasil participou ativamente de sua construção e é signatário deles. Portanto, comprometeu-se com a sua implementação.

Por sua vez, os ODS reforçam a CDPD e também a LBI – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, porque trazem os mesmos princípios e valores.

Assim sendo, nós brasileiros temos estes três instrumentos potentes para aprofundar a Cultura da Inclusão em nosso país: a Convenção, a LBI e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

 

Benefícios advindos da Lei de Cotas

Gradualmente, os benefícios que a Lei de Cotas traz estão sendo percebidos.

Sim, ela traz benefícios para a empresa, para a sociedade e para as pessoas com deficiência, familiares e amigos – embora nem sempre haja consciência deste fato.

Dentre os benefícios para as empresas, destaco:

– Criação de clima organizacional positivo, que humaniza o ambiente, estimula a cooperação, fortalece a identificação com a empresa e incentiva a criatividade, com adaptação de procedimentos ou de equipamentos, agregando valor ao negócio;

– Aumento da produtividade, contribuindo para a sustentabilidade da empresa;

– Valorização da imagem corporativa, interna e externamente;

– Diminuição da vulnerabilidade legal;

– Influência positiva sobre os públicos com os quais a empresa interage: fornecedores, clientes, stakeholders e outros, gerando um círculo virtuoso.

Dentre os benefícios trazidos para a sociedade, destaco:

– Ao fazer parte do mercado formal de trabalho, as pessoas com deficiência passam a receber salário e a ter os mesmos benefícios trabalhistas. Passam a ter mais acesso a bens, serviços e produtos, o que fortalece o mercado interno; também passam a gerar demanda de bens e serviços: cadeiras de rodas de diversos tipos, softwares, aparelhos individuais de amplificação sonora, treinamento de cães guia, adaptação de automóveis, entre outros.

– Passam a ser contribuintes do sistema previdenciário e, ao consumir produtos e serviços, pagam impostos, como os demais;

– Formação de nicho de produtos e serviços específicos que, em muitos casos, também são adequados para pessoas da terceira idade, como estes:

– Em 2017, a 15ª. Feira Reatech reuniu em São Paulo cerca de 300 expositores e 40 mil visitantes;

– Também em 2017, a primeira Mobility Rio 2017 reuniu cerca de 3 mil visitantes e empresas fornecedoras de produtos e serviços de acessibilidade;

– A Associação da Indústria, Comércio e Serviços de Tecnologia Assistiva (Abridef) afirma que a venda de cadeiras de rodas, carros adaptados e outros equipamentos para pessoas com deficiência movimenta, anualmente, cerca de R$ 5,5 bilhões por ano no Brasil;

– As vendas de veículos adaptados para pessoas com deficiência saltou de 42 mil unidades em 2012 para 139 mil em 2016 e atualmente responde por 8,3% dos negócios automobilísticos no país (Agência ESTADO, 2017).

Dentre os benefícios para as pessoas com deficiência e suas famílias, menciono o aumento da autoestima, o desenvolvimento de seu potencial, a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania.

Concluindo, convido as empresas e a sociedade a considerar a Lei de Cotas por outro ângulo, como um elemento de fortalecimento dos Direitos Humanos e de fator de propulsão (dentre outros) para o Desenvolvimento Sustentável, contribuindo para a criação de uma sociedade mais justa, igualitária, que aprecia a diversidade e a transforma em vantagem, em valor, em oportunidade e em direito.

(*) Marta Gil – Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, consultora de Inclusão de Pessoas com Deficiência, consultora da série “O futuro que queremos- trabalho decente e inclusão de pessoas com deficiência” (OIT e Ministério Público do Trabalho) responsável pela Metodologia SESI SENAI de Gestão da Inclusão na Indústria, Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais, membro do Conselho Científico do Instituto de Ensino e Pesquisa/APAE SP.

Autora dos livros “Caminhos da Inclusão – a trajetória da formação profissional de pessoas com deficiência no SENAI-SP”, “As cores da Inclusão – SENAI MA” e organizadora do livro “Educação Inclusiva: o que o professor tem a ver com isso ?”, USP/Fundação Telefônica/Ashoka, prêmio Imprensa Social.

 

Para saber mais

BRASIL Lei n.o 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, em 24 de julho de 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm.

BRASIL. Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. Cartilha do Censo 2010 – Pessoas com Deficiência 2012. Disponível em: <http://www.portalinclusivo.ce.gov.br/phocadownload/cartilhasdeficiente/cartilha-censo-2010-pessoas-com-deficiencia.pdf>

BRASIL. Decreto Executivo n.o 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, 25 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm.

BRASIL. Decreto legislativo n.o 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Senado Federal, em 9 de julho de 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Congresso/DLG/DLG-186-2008.htm.

BRASIL. Decreto n.o 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Brasília, 20 de dezembro de 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm, consulta 01/04/2013.

BRASIL. Decreto n.o 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Brasília, 2 de dezembro de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm.

BRASIL. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) n.o 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, 6 de julho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.

BRASIL. Lei n.o 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Brasília, 24 de outubro de 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7853.htm.



Deixe um comentário