- julho 21, 2019
- Postado por: Rafael Kosoniscs
- Categories: Inclusão, Legislação
Já se passaram quatro anos da promulgação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Como se imaginava, o principal mérito desse importante diploma legal foi o de despertar a atenção da comunidade jurídica para o tema, por terem sido alterados os artigos relativos à capacidade de agir da pessoa que não pode exprimir sua vontade por causa transitória ou permanente (arts. 3º e 4º), bem como as regras sobre curatela (arts. 1.767 a 1.778), além da inserção do instituto da tomada de decisão apoiada (art. 1.783-A).
Em vista disso, tornou-se obrigatória a referência ao Estatuto da Pessoa com Deficiência nas primeiras aulas dos cursos de direito e nos manuais de direito civil relativos à Parte Geral e Direito de Família. Porém, o interesse geral relativo à matéria ainda se restringe às dúvidas quanto ao acerto do legislador em atribuir capacidade negocial a quem necessita de proteção, ou, mais especificamente, se a pessoa com transtorno mental deve ser sempre considerada relativamente incapaz, mesmo quando estiver com a saúde profundamente debilitada, assim como as dúvidas sobre a aplicação prática da tomada de decisão apoiada. A despeito das opiniões favoráveis e contrárias sobre esses aspectos de direito civil, é na construção da jurisprudência que têm sido feitos os ajustes dessas regras para o atendimento das necessidades das pessoas.
Contudo, há um longo e sinuoso caminho a ser percorrido para a inclusão da pessoa com deficiência nos mais diversos aspectos da vida cotidiana. Uma sociedade inclusiva é aquela que possibilita a todos o seu livre desenvolvimento,[1] de modo que cada um possa estar onde desejar, realizando, por conta própria – isto é, com a devida privacidade de seus atos, ainda que na esfera pública – as atividades que passam despercebidas pela maioria, como ir e vir, estudar, aprender, praticar esportes, conhecer, visitar, viajar e viver em família, sem que se sinta menosprezada em sua honra ou tratada como pessoa merecedora de piedade.
O direito civil tem muito mais a oferecer em termos de inclusão da pessoa com deficiência, do que somente ter modificado as regras sobre capacidade de agir e curatela, e considerar ato ilícito a violação de direitos da personalidade, entre os quais a honra e a privacidade. Um dos institutos jurídicos que poderia contribuir para a inclusão da pessoa com deficiência é a função social.
A função social do contrato está prevista no art. 421 do Código Civil, embora esteja atualmente na pendência do que se estatuirá com a eventual conversão da MP 881 em lei ordinária. Já a função social da propriedade está no art. 1.228, parágrafo único, do Código Civil. Consagrada na Constituição Federal como direito fundamental (art 5º, XXIII) e fundamento da ordem econômica (art. 170, III), também se encontram referências a esta no Estatuto da Cidade.
Vale mencionar a função social da empresa, a qual não está disciplinada no Código Civil, diferentemente do contrato e da propriedade, embora houvesse previsão de sua inserção como parágrafo único do art. 966. Esta consiste na harmonização dos interesses individuais do empresário com o respeito e atendimento dos interesses da sociedade na realização dessa importante atividade. Assim, garante-se a liberdade ao empresário para que exerça sua atividade econômica com o intuito de obter lucro, ao mesmo tempo em que a sociedade tem interesse que essa atividade beneficie a todos, como, por exemplo, com a geração de empregos, ou, que, ao menos, não lhe seja prejudicial, como no caso da poluição e na colocação de produtos nocivos à vida e à saúde.
Em que pese a ausência de regra específica no Código Civil, tem-se referência à função social da empresa na Lei das Sociedades por Ações (arts. 116, parágrafo único e 154). Nos princípios da atividade econômica, previstos no art. 170, caput e incisos da Constituição Federal, poder-se-ia encontrar o conteúdo desse princípio, quando se estabeleceu que a ordem econômica se funda na livre iniciativa e no trabalho, e elencou princípios e valores importantes, entre os quais a função social da propriedade.
Tanto o contrato quanto a propriedade têm função social, mas não se aplicam na mesma intensidade em qualquer contrato ou para todos os tipos de propriedade. Importa observar essas diferenças em um mesmo tipo contratual. Por exemplo, o contrato de compra e venda de um objeto para consumo próprio tem menor função social do que o mesmo contrato de compra e venda de um concorrente no mercado. Com efeito, a função social do contrato se aplica frequentemente naqueles contratos que envolvem o exercício de direitos sociais, em especial, saúde e educação.[2] O mesmo raciocínio vale para a propriedade: a propriedade rural tem função social diferente da propriedade urbana, razão pela qual os constituintes estabeleceram o conteúdo da função social daquele tipo de propriedade, enquanto remeteram ao plano diretor dos municípios o conteúdo da função social desta última.
Considerando que o empresário usa bens e celebra contratos no exercício de sua atividade, têm-se os reflexos da função social do contrato e da propriedade projetados como se fossem a função social da empresa. Não há como escapar dessa situação, alegando que pode exercer sua atividade com irrestrita liberdade, sem se preocupar com o interesse da coletividade.
No caso da pessoa com deficiência, existem duas situações de aplicação da função social que merecem destaque: a inclusão no mercado de trabalho e a inclusão em sala de aula.
O empresário, individualmente ou por meio de sociedade, tem a liberdade de contratar empregados, mas esta é limitada pela função social do contrato de trabalho. Essa liberdade não se resume à alienação da força de trabalho mediante remuneração, subordinação e habitualidade, mas pelo seu exercício se permitirá a satisfação das necessidades do empregado. Ainda que todas as pessoas venham a ser contratados como autônomos, o contrato continuará a ter função social, mesmo que a lei diga que não.
Nos dias atuais, vivem-se momentos difíceis, porque precisam ser criados milhões de postos de trabalho, porque esta é a função social da empresa. Quiçá o direito civil virá a ter maior importância na regulação de certas relações de trabalho. Apesar disso, ainda está em vigor o art. 93 da Lei n°. 8.213/1991,[3] o qual estabelece a obrigatoriedade de contratação de pessoas com deficiência para empresas com mais de cem empregados,[4] sendo necessária a adaptação dos locais de trabalho, para que os bens de produção existentes no estabelecimento empresarial sejam acessíveis a todos os trabalhadores, nos termos do art. 34, § 1º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Para entender as dificuldades que pessoas com deficiência enfrentam para trabalhar, basta imaginar a situação hipotética em que o empregador disponibilizasse a seus empregados mesas pequenas e estreitas, banquetas duras de madeira sem encosto para as costas e uma sala com iluminação precária, com sanitários muito afastados do local. O trabalho seria desanimador. É isso que ocorre quando o ambiente não é adaptado para recebê-las com a dignidade que merece.
A pessoa com deficiência não pode ficar estigmatizada, considerando-a como inadequada para o trabalho. Isso é exemplo de exclusão, o que é vedado pelos diversos ramos do direito, inclusive pelo direito civil. Ela deve ter o direito de trabalhar e ganhar seu salário para ter a vida que deseja ter, sem depender de familiares ou demais pessoas.
No tocante ao ensino, não é suficiente a adequação dos espaços para que a pessoa com deficiência possa estudar. A Declaração de Salamanca, de 1994,[5] foi um marco para transformação do conceito de educação inclusiva. O direito à educação inclusiva foi garantido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.° 9.394/1996) e reafirmado no art. 27 e seguintes do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Lamentavelmente, a inclusão, na maior parte dos casos, ainda é meramente formal, porque, em muitas escolas, só houve a supressão de classes especiais, em que se segregavam crianças com deficiência intelectual, visual ou auditiva do convívio com as demais crianças.
Há escolas que recusam a matrícula de crianças com deficiência, ou até mesmo exigem a contratação de profissionais à parte para que se dê o acompanhamento individualizado em sala de aula. Porém, a jurisprudência tem sido favorável às crianças! Julgou-se descabida a recusa de mais de dois alunos por sala de aula que necessitavam de apoio para a educação inclusiva.[6] Entendeu-se, noutro caso, que houve dano moral na recusa de aluno com deficiência múltipla em escola particular.[7] Considerou-se ilícita a conduta da escola que recusou matrícula de aluno cego, ao afirmar-se que “A alegação de que a adequação de escola particular ao acesso do portador de necessidades especiais aumenta os custos da mesma, fazendo com que os mesmos sejam rateados entre os demais integrantes de seu corpo discente é irrelevante e impertinente à matéria debatida nos autos”.[8]
Tal entendimento pode parecer injusto ou proporcionar críticas de que se está fazendo “caridade com o chapéu alheio”, porque os pais das demais crianças terão que arcar com o aumento do valor das mensalidades do estabelecimento de ensino pelo repasse dessas despesas operacionais nas mensalidades de todos os alunos. Contudo, algo similar já acontece em matéria de planos de saúde, em que não se admitem recusas de coberturas de atendimento pela exclusão expressa ou ausência de previsão no instrumento contratual. Dificilmente se poderia imaginar uma pessoa, que, necessitando de determinado atendimento para sobreviver, aceite com resignação a máxima “pacta sunt servanda” como sentença de morte, ou imaginar que a sociedade não se importa com o fato de alguém morrer por falta de atendimento médico por força do contrato. O mesmo raciocínio vale para a atividade econômica de serviços educacionais: não se pode tratar com indiferença uma criança impossibilitada de estudar por ter deficiência pelo fato de o contrato de prestação de serviços educacionais não contemplar o atendimento do que é necessário à efetivação da educação inclusiva.
Portanto, a contribuição do direito civil para a inclusão da pessoa com deficiência não se limita às regras sobre capacidade de agir, curatela e tomada de decisão apoiada. Abrange, também, a aplicação da função social – seja a do contrato, da propriedade ou empresa – na garantia do exercício dos direitos à educação e ao trabalho, necessários ao seu desenvolvimento e promoção de sua autonomia.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] Aprofundei essas questões no artigo Direitos da personalidade no Estatuto da Pessoa com Deficiência, publicado na obra coletiva organizada por Atalá Correia e Fabio Jun Capucho, intitulada Direitos da Personalidade: a contribuição de Silmara J. A. Chinellato (Barueri: Manole, 2019, p. 142-152)
[2] Cf. TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Uma década de aplicação da função social do contrato – análise da doutrina e da jurisprudência brasileiras. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 940, p. 49-85, 2014.
[3] No setor público, tem-se a Lei n.° 8.112/1990, que estabelece no art. 5º, § 2º, a reserva de 20% de vagas à pessoas com deficiência.
[4] Cf. CARVALHO, Maria de Lourdes. A empresa contemporânea: sua função social em face das pessoas com deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
[5] UNESCO. Declaração de Salamanca sobre Princípios e Práticas das Necessidades Educativas Especiais (1994). Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000139394_por
[6] TJSP. Apelação Cível 1016037-91.2014.8.26.0100. Relatora: Des. Maria Lúcia Pizzotti. 30ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 8.nov.2017.
[7] TJMG. Apelação Cível 1.0512.10.001322-0/004. Relator: Des. Roberto Vasconcellos. 17ª Câmara Cível. Julgado em 7.jun.2018.
[8] TJMG. Apelação Cível com Reexame Necessário 1.0148.14.002790-2/004. Relator: Des. Rogério Medeiros. 13ª Câmara Cível. Julgado em 3.mar.2016.
Eduardo Tomasevicius Filho é professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2019, 9h27