- setembro 17, 2019
- Postado por: Rafael Kosoniscs
- Category: Social
A busca das pessoas com deficiência por condições de igualdade é cheia de desafios. Questões relacionadas à inclusão social e à acessibilidade estão entre as que merecem maior atenção. Nessa jornada, muitas conquistas foram alcançadas, e outras estão em andamento. Uma delas é a instituição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que busca promover e assegurar, “em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”.
Em 21 de setembro é celebrado o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência. Para marcar a data, será realizado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos dias 19 e 20, o 1º Encontro Nacional de Acessibilidade e Inclusão?, que reunirá especialistas da área e representantes de órgãos públicos para discutir temas como acessibilidade arquitetônica e urbanística, inclusão nos ambientes de trabalho, direitos humanos e justiça internacional – a proteção da dignidade humana.
Em relação ao Poder Judiciário, foi publicada, em 22 de junho de 2016, a Resolução 230 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que orienta a adequação das atividades dos órgãos judiciários e de seus serviços auxiliares “às determinações exaradas pela Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo e pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência”.
Após a edição dessa resolução, foi criada no STJ a Comissão de Acessibilidade e Inclusão, que desde agosto de 2018 tem desenvolvido uma série de ações para dar efetividade, no âmbito do tribunal, às diretrizes do CNJ. Entre outras medidas, a comissão firmou nesse período novos termos aditivos ao contrato com a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE-DF), destinado à contratação de colaboradores com deficiência mental, e ao contrato de tradução de intérprete de libras, para atendimento de pessoas com deficiência auditiva que utilizam os serviços do tribunal.
Legislação avançada
Para a presidente da Comissão de Acessibilidade e Inclusão, ministra Nancy Andrighi, a jurisprudência do STJ também tem desempenhado papel de destaque na busca pela inclusão e igualdade das pessoas com deficiência. Ela ressaltou a importância de julgados referentes ao uso de transporte público, à acessibilidade nos prédios, à reserva de vagas em concursos públicos destinadas às pessoas com deficiência, entre outros. “Do ponto de vista legal, temos uma legislação bem avançada. Agora, precisamos ir além com as regulamentações, para que a prática seja visível a todos”, afirmou a ministra.
Em relação ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, a ministra Nancy Andrighi explicou que se trata de lei bastante abrangente. “O estatuto foi elaborado a partir de inúmeras audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados e abarca o acesso à Justiça, os direitos fundamentais em relação à vida, à saúde, à educação, ao lazer e ao trabalho, entre outros direitos. Essas áreas têm suas diretrizes principais, além da questão da acessibilidade em si, do acesso à informação e comunicação, da tecnologia assistiva, do direito à participação na vida pública e política e na ciência e tecnologia”, disse a ministra.
Acessibilidade
Uma das principais dificuldades das pessoas com deficiência é a falta de acessibilidade, especialmente no que se refere ao transporte público. No julgamento do REsp 1.733.468, em junho de 2018, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma do STJ manteve a condenação de uma empresa de Minas Gerais a pagar R$ 25 mil como compensação por danos morais a um portador de distrofia muscular progressiva, “negligenciado e discriminado enquanto pessoa com deficiência física motora na utilização de ônibus do transporte coletivo urbano”.
No recurso ao STJ, a empresa alegou que a recusa de usar o elevador do ônibus para embarque do passageiro se devia ao fato de ele usar muletas, e a Lei Municipal 10.410/2003 e o Decreto 11.342/2012 estabelecem que o acesso por meio de elevador é exclusivo para cadeirantes. A relatora, porém, afirmou que a Súmula 280 do Supremo Tribunal Federal, aplicável analogicamente no âmbito do STJ, impede o exame de alegações recursais relacionadas a direito local.
Segundo o acórdão recorrido, as provas testemunhais comprovaram a existência de sucessivas falhas na prestação do serviço, incluindo a recusa do motorista em parar o ônibus quando avistava o usuário.
Ao decidir pela manutenção dos danos morais, Nancy Andrighi ressaltou que “a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência alçou a acessibilidade como princípio geral a ser observado pelos Estados partes, atribuindo-lhe, também, o caráter de direito humano fundamental, sempre alinhado à visão de que a deficiência não é um problema na pessoa a ser curado, mas um problema na sociedade, que impõe barreiras que limitam ou até mesmo impedem o pleno desempenho dos papéis sociais”.
Direito de votar
A acessibilidade também exige a remoção de obstáculos que dificultam a entrada de pessoas com deficiência em prédios. O Ministério Público Federal, em ação civil pública com pedido de tutela antecipada contra a União, o estado de Sergipe e o município de Canhoba, pediu que fossem tomadas as medidas necessárias para garantir a acessibilidade nos locais de votação.
No acordão de segunda instância, foi decidido que não caberia intervenção da Justiça Federal em assunto que deveria ser regulado pela Justiça Eleitoral, e o processo foi extinto sem resolução de mérito. No entanto, ao julgar agravo interno no REsp 1.563.459, a Segunda Turma entendeu que a questão vai além do processo eleitoral e manteve a decisão monocrática do relator, ministro Francisco Falcão, que ordenou a remessa dos autos ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região para processamento do feito.
Segundo o relator, à Justiça Eleitoral são reservadas as matérias relacionadas diretamente ao processo eleitoral. No caso dos autos, disse ele, a discussão transborda o campo do direito eleitoral, pois a questão de direito material diz respeito à acessibilidade de pessoas com dificuldade de locomoção a prédios públicos ou particulares destinados à coleta de votos.
Documentos em braille
Em maio de 2018, a Terceira Turma negou provimento ao agravo interno no REsp 1.377.941, no qual um banco contestava o pedido da Associação Fluminense de Amparo aos Cegos (AFAC) para confecção de contratos de adesão e demais documentos fundamentais à relação de consumo em braille, distribuição de uma cartilha para empregados do banco com normas de atendimento aos deficientes visuais e pagamento de indenização de danos morais coletivos.
Em primeira instância, foram julgados procedentes os pedidos de elaboração de documentos em braille e da cartilha com orientações para os empregados, que deveriam ser confeccionados em 30 dias, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. Além disso, foi determinado o pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 1 milhão. No recurso especial, o relator, ministro Marco Aurélio Bellize, reconheceu a necessidade de produção dos documentos em braille, mas fixou a multa diária em R$ 1 mil.
“A obrigatoriedade de confeccionar em braille os contratos bancários de adesão, e todos os demais documentos fundamentais para a relação de consumo estabelecida com indivíduo portador de deficiência visual, além de encontrar esteio no ordenamento jurídico nacional, afigura-se absolutamente razoável, impondo à instituição financeira encargo próprio de sua atividade, adequado e proporcional à finalidade perseguida, consistente em atender ao direito de informação do consumidor, indispensável à validade da contratação, e, em maior extensão, ao princípio da dignidade da pessoa humana”, afirmou Marco Aurélio Bellizze.
Omissão na cultura
O acesso à informação não se limita às relações de consumo. A Lei 4.169, de 4 de dezembro de 1962, estabelece que a utilização do Código Braille nas revistas impressas, livros didáticos e obras de difusão cultural, literária ou científica será feita gradativamente, cabendo ao Ministério da Educação, ouvido o Instituto Benjamin Constant, baixar regulamentos sobre os prazos relativos à sua obrigatoriedade em todo o território nacional.
Com base nessa lei, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a União para obrigá-la a “disciplinar prazos e condições para que todas as editoras e congêneres do país passem a publicar cota de suas obras em meio acessível às pessoas com deficiência visual (braille)”.
O relator, ministro Herman Benjamin, ao não conhecer do REsp 1.407.781, interposto pelo Ministério Público, esclareceu que não podem ser impostas, por meio de regulamentos, obrigações que devam ser estabelecidas por lei, conforme dispõe o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal. “Depreende-se que, apesar de ter sido invocado dispositivo legal, foi debatida e solucionada matéria com fundamento eminentemente constitucional, sendo a sua apreciação de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal”, afirmou o relator.
Apesar do não conhecimento do recurso especial, o ministro Herman Benjamin ressaltou que “mostra-se desrespeitosa a inércia estatal, uma vez que, apesar de o normativo legal estar presente no ordenamento jurídico pátrio desde 1962, até o presente momento não foram adotadas as medidas por ele exigidas”.
Cargos públicos
A Constituição Federal, no artigo 37, VIII, estabelece que a lei deve reservar percentual de cargos e empregos públicos para pessoas com deficiência. Muitas dúvidas sobre essa questão surgem quando o concurso oferece pequeno número de vagas. Em um recurso especial, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) alegou que o limite máximo de reserva de 20% dos cargos refere-se ao total de vagas ofertadas no concurso, e não a cada cargo.
Em seu voto, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator do REsp 1.483.800, explicou que o artigo 37 do Decreto 3.298/1999 (revogado pelo Decreto 9.508/2018) assegurava às pessoas com deficiência a reserva de, no mínimo, 5% das vagas do concurso, enquanto o artigo 5º da Lei 8.112/1990 estabeleceu o limite de até 20%. O relator esclareceu que esses percentuais se referem “às vagas em cada cargo, sob pena de permitir situações extremas de oferta de vagas a portadores de necessidades especiais somente para os cargos de menor expressão, deturpando a função da referida política de inserção do detentor de deficiência no mercado de trabalho”.
Ao dar provimento ao recurso, o relator adotou a posição do STF que defende o tratamento igualitário como regra geral. Dessa forma, oferecer apenas uma das duas vagas para a concorrência em geral não estaria em harmonia com o princípio da razoabilidade.
“Na espécie, a oferta de apenas duas vagas indica que a reserva de uma delas, de fato, acarretará a desproporção combatida pela jurisprudência dos tribunais superiores” – afirmou o ministro, observando que o eventual surgimento de vagas no período de validade do certame, em quantitativo que permita a observância do limite previsto na Lei 8.112/1990, deve garantir a nomeação do candidato com deficiência colocado em primeiro lugar.
Direito à nomeação
No RMS 60.776, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho concedeu tutela provisória para nomeação imediata de candidato com deficiência a uma vaga no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), com lotação em Teresina. Mesmo tendo sido aprovado em primeiro lugar na lista de candidatos com deficiência para o cargo de analista judiciário – especialidade execução de mandados, o candidato não foi nomeado durante a vigência do concurso, que expirou em 2015. Ele alegou que foram nomeados sete candidatos da lista geral, o que infringiria seu direito.
O TRF1 argumentou que o primeiro lugar na lista de candidatos com deficiência seria nomeado no surgimento da décima vaga, o que não ocorreu durante a vigência do concurso. No entanto, Napoleão Nunes Maia Filho, ao conceder a tutela provisória, afirmou que a regra que reserva 5% das vagas para os candidatos com deficiência deveria ter sido aplicada.
“Considerando que o TRF1 convocou sete candidatos para tomar posse no cargo analista judiciário – área judiciária (especialidade execução de mandados) e que a validade do concurso venceu antes das nomeações alcançarem a décima vaga, verifica-se que, ao aplicar a regra do certame de reserva de 5% das vagas, uma das vagas disponibilizadas deveria ter sido preenchida pelo impetrante”, concluiu o ministro.
STJ