- dezembro 2, 2019
- Postado por: Rafael Kosoniscs
- Categories: Eventos, Inclusão, Social
A inclusão de pessoas trans no mercado formal de trabalho é uma realidade distante
Duas mulheres entram pela porta do auditório do Sincovaga na Rua 24 de Maio, a um quarteirão da Praça de República. É início de tarde de quinta-feira (28). “É aqui que vai ter o bate-papo sobre empregabilidade de pessoas trans?”, pergunta uma delas. “É que recebemos um convite da Laura Prevato”, diz a outra. “Isso mesmo, pode entrar e ficar à vontade, daqui a pouco todas chegam para começarmos”, responde Márcia Hipólito do Coexistir, indicando com as mãos o espaço destinado a elas.
As duas mulheres, que sorriem timidamente enquanto conversam, são trans. Elas fazem parte de uma lista de 17 convidados para receber orientações sobre empregabilidade. O evento acontece na sede do Sincovaga, o qual possui o programa Coexistir, um projeto que auxilia a inclusão pessoas no mercado de trabalho, mais precisamente no comércio varejista.
Pouco a pouco os convidados vão chegando. Algumas faltas acontecem por conta da chuva de São Paulo, mas o planejamento segue normalmente. Às 14h20 o bate-papo começa.
Quem conduz a conversa é Laura Prevato, uma mulher trans de 34 anos, articuladora social e defensora dos direitos LGBT. Mesmo morando na capital da diversidade brasileira, a não inclusão de pessoas no mercado formal de trabalho é uma realidade que assola milhares de trans e travestis no Estado de São Paulo. O número se torna ainda mais alarmante quando se tem o Brasil como o país que mais mata travestis, mulheres transexuais e homens trans do mundo. Os dados são da organização não governamental Transgender Europe (TGEU).
“Estou aqui para orientar e esclarecer vocês sobre nossas leis, as quais conquistamos ao longo de muito anos, mas que não acontece no mercado de trabalho. Temos que nos posicionar, saber cobrar nossos direitos, mas fazer a nossa parte também”, diz Laura ao iniciar a conversa.
A trajetória da articuladora é de superação, mas está longe de representar a realidade de outras pessoas transexuais aqui no Brasil. “Mesmo me vendo em outra situação, com escolaridade e experiência profissional, ainda assim encontro dificuldade para trabalhar. Estou fora do mercado formal há meses”, conta. O relato de Laura encoraja o desabafo das participantes. “Eu não tenho muita experiência profissional por falta de oportunidade. Eu era prostituta, parei agora, mas não enxergo nada. É difícil você largar uma vida e ir para uma outra direção”, conta Giovanna, uma mulher morena de 44 anos. Uma outra participante complementa que não consegue largar a prostituição porque já se enxerga engolida pelo tempo e sem perspectivas de mudanças.
Segundo uma pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais aponta que 90% das pessoas trans se prostituiu em algum momento da vida. A média de vida dessa população no Brasil é de 35 anos – menos da metade da média nacional, que é de 75 anos. Entretanto faltam indicadores da entrada de pessoas trans no mercado formal.
Entre uma pausa e outra, Maria de Fátima, coordenadora do programa Coexistir, acrescenta: “Quando a gente fala do mercado de trabalho, estamos falando de uma série de discriminações que acontecem. Quanto mais diverso, mais difícil”, afirma. “Sempre será difícil. A mulher sempre quebrou barreiras, tanto no mercado de trabalho quanto na participação da sociedade, no direito ao voto, ao divórcio, no uso da maquiagem. Nunca foi fácil, mas fomos desconstruindo um a um. E vamos continuar a quebrar. Vai ser fácil? Não, não vai. Mas é possível fazer”, encoraja Fátima.
A dificuldade das pessoas trans começa antes mesmo de conseguir um emprego. “Tenho experiência, já entreguei diversos currículos e até agora nada. Nem me chamam para nenhuma entrevista”, conta uma das participantes. As que conseguem oportunidades, sofrem outras barreiras dentro das empresas, como preconceitos, piadas e até mesmo agressões. “Eu trabalhei em alguns lugares e não tive tantos problemas, mas tenho amigas que já sofreram agressão física dentro do trabalho por conta da aparência”, diz Emma, uma jovem loira de 20 anos. “Eu percebo que a passibilidade (quando a pessoa trans é lida pela sociedade como se fosse cis) ajuda bastante nesse processo de aceitação, tira a gente da categoria de sub-humano, que é como as pessoas nos enxergam”, desabafa.
A preocupação com o futuro é facilmente percebida na fala dos participantes. O medo de fazer parte das estatísticas é também um dos temores. “Eu sofri preconceito até dentro de casa. Isso machuca. Imagina para quem apanha na rua ou que são obrigadas a se prostituírem. Isso não é vida. Eu me imagino nessa situação e sinto desespero, não sei se eu teria forças para isso”, acrescenta uma delas.
Laura Prevato segue dando dicas e ouvindo relatos ao longo de quase duas horas de conversa. Durante o bate-papo, outras questões são levantadas, a começar pelo despreparo das empresas em receber pessoas trans, bem como a falta de orientação das equipes, que muitas vezes excluem essas pessoas e faltam com respeito. Laura entende que, muitas vezes, a carência de emprego não é por falta de profissionalização e experiência, mas por preconceito e barreiras construídas dentro do RH. “São recursos humanos, mas onde está a humanidade desses recursos?”, questiona Laura.
Maria de Fátima expõe o lado das empresas para as participantes. Com experiência em RH e com anos à frente de programas de inclusão, diz: “Os profissionais de Recursos Humanos têm muita lição de casa para fazer. Mas acredito também que precisa ser uma via de mão dupla. Como vamos ajudar o mercado a se modificar? Temos que discutir, conversar, desconstruir, mostrar outros olhares, aprender a lidar e convencer que o mundo é diversidade e todos têm a ganhar com isso.”
O evento chega ao fim às 16h30. E, no décimo sexto andar, com vista privilegiada para o Teatro Municipal e Viaduto do Chá, uma fina garoa toma conta da capital paulista indicando que dias de sol para a empregabilidade ainda é um sonho distante.
por Rafael Kosoniscs