- fevereiro 27, 2020
- Posted by: Rafael Kosoniscs
- Category: Entrevista
Flavio Gonzalez é um profissional conhecido em toda a esfera da inclusão. Ele é supervisor do Serviço de Inclusão Profissional do Instituto Jô Clemente, antiga APAE de São Paulo. Entretanto, Flavio também está envolvido em diversos projetos que lutam para assegurar os direitos das minorias, mas sua maior motivação é incluir pessoas com deficiência intelectual.
Flavio batalha há quase três décadas na inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, uma trajetória que vem ajudando centenas de pessoas a exercer seus direitos. Mas o que ele pensa a respeito de inclusão e da diversidade? Qual a sua opinião a respeito dos problemas atuais que assolam os direitos as pessoas com deficiência?
Coexistir: Há quanto tempo você trabalha no Instituto Jô Clemente?
Flavio: Na verdade eu trabalho com inclusão profissional há 24 anos, e estou há 7 anos no Instituto Jô Clemente. Lá, nós trabalhamos com pessoas com deficiência intelectual – em menor número com pessoas com transtorno aspectro autista. A nossa causa primária é deficiência intelectual.
Coexistir: Tendo em vista que já é difícil a inclusão de pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho, qual o grau de dificuldade quando se fala em deficiência intelectual?
Flavio: O grande problema da deficiência intelectual é o estigma. Eu costumo provar isso da seguinte maneira: a maior parte das deficiências que existem no cotidiano são nomes que em algum momento da história foram utilizados pra se referir às pessoas com deficiência intelectual. Alguns deles: “o idiota”, “o imbecil”, “o retardado”, “o débil mental”, “o mongoloide” e por aí vai.
“É curioso observar que a deficiência intelectual ao longo da história teve uma carga tão pejorativa ao ponto de cair no jargão popular com as conotações negativas, não é? Então, os maiores desafios da inclusão da pessoa com deficiência intelectual são a discriminação e o preconceito.”
Coexistir: A deficiência intelectual é invisível?
Flavio: A maioria das vezes é invisível sim, por ser uma deficiência que é diferente de outros tipos. Isso, em alguns aspectos, é muito problemático. Quando a pessoa tem síndrome de Down, por exemplo, num certo sentido, é mais fácil porque as pessoas já reconhecem aquela pessoa como tendo uma deficiência, mas na maior parte dos quadros de deficiência intelectual, a pessoa não tem nenhum traço físico, tampouco algum estereótipo. Por isso acontece que ao longo da vida essa pessoa, muitas vezes, leva a fama de preguiçoso, vagabundo, etc. Demora-se para conseguir um diagnóstico.
Coexistir: Quais são os métodos adotados para fazer a inclusão de pessoas com deficiência intelectual no mercado de trabalho?
Flavio: A principal metodologia, a qual nós acreditamos e que é usada no mundo inteiro, é a metodologia do Emprego Apoiado. Essa metodologia foi criada nos Estados Unidos no final da década de 1970. Hoje ela é disseminada no mundo inteiro. Pra você ter uma ideia, no ano passado nós tivemos em Amsterdã o congresso União Europeia de Emprego Apoiado.
Coexistir: No Brasil há outras metodologias?
Flavio: Embora na nossa realidade brasileira ainda predomine, muitas vezes, o modelo das oficinas protegidas, a metodologia mais adequada e a mais utilizada pra incluir pessoa com deficiência intelectual é a metodologia de Emprego Apoiado, com certeza.
Coexistir: O que você acha do Projeto de Lei 6159/2019 (que visa derrubar a Lei de Cotas)?
Flavio: Essa PL 6159 seria um retrocesso incalculável. Significaria a perda de praticamente todos os direitos conquistados historicamente pelas pessoas com deficiência. O prejuízo seria imenso: a custo de muito esforço de pessoas com deficiência, familiares e militantes que, ao longo de décadas, conquistaram os direitos de hoje. É um PL que vai completamente na contramão de todos os movimentos mundiais, dos objetivos, das metas da ONU. Enfim, realmente foi algo surpreendente para um país que aprovou uma Lei Brasileira de Inclusão (que levou 15 anos pra ser aprovada).
“A Lei de Cotas foi exaustivamente discutida, corrigida e passou por um milhão de tramites e, agora, vem um Projeto de Lei mudar tudo isso sem consultar a sociedade? O aspecto mais gritante é a possibilidade da empresa pagar ao invés de contratar.”
Coexistir: As empresas se preocupam com a inclusão de uma maneira geral?
Flavio: As grandes e boas empresas têm uma preocupação maior com o tema diversidade. Muitas vezes se fala em negros, mulheres, movimento LGBT, etc. A pessoa com deficiência acaba ficando nesse grupo “etc”. Esse é um aspecto que a gente não gosta. Entretanto, a gente ousa dizer que quem puxou o tema da diversidade foi a pessoa com deficiência, mobilizado principalmente com a questão de Lei de Cotas. Isso é notório.
Coexistir: E essas empresas estão prontas para fazer essa inclusão? Você acha que existe conhecimento no mundo corporativo pra incluir pessoas com deficiência?
Flavio: Existe um pouco de abertura, mas não em todas as empresas. No entanto, a gente percebe que se você pensar em preparo, as empresas realmente não estão preparadas no sentido que não ter acessibilidade. Muitas empresas ainda escolhem pessoas com quadros que necessitam de “menor apoio”, vamos dizer assim, né? O pessoal usa a expressão “deficiência mais leve”. Eu não gosto de usar essa expressão porque acho que quem tem uma deficiência nunca acha ela leve, mas as empresas realmente preferem pessoas que precisam de menor apoio, que têm um quadro funcional minimamente comprometido, mas que se enquadre na Lei de Cotas – e isso cria um problema.
“As empresas dizem ter dificuldades de encontrar pessoas com deficiência e acabam sendo multadas. Mas porque elas têm dificuldades? Porque ao invés escolher as pessoas pela potencialidade, querem escolher pelo tipo de deficiência. E isso traz um problema para as próprias organizações.”
Coexistir: Como são as inspeções para saber que as empresas estão cumprindo a Lei de Cotas? Ela existe?
Flavio: Nós temos uma fiscalização por parte da fiscalização do trabalho, que era o Ministério do Trabalho e Emprego, mas que agora está incorporada na esfera da economia. Temos uma fiscalização do Ministério Público do Trabalho que é uma linha de combate à discriminação. Aqui, em São Paulo, nós temos a figura emblemática do doutor José Carlos do Carmo, que faz um trabalho excepcional. Eu atribuo a esse grupo grande parte das conquistas que nós temos. Entretanto, sabemos que existe um déficit de fiscais e a fiscalização do trabalho vem sendo sucateada ao longo dos anos. Mas reconhecemos o grande esforço dos fiscais, os quais têm feito de tudo pra que essa lei seja cumprida no Brasil.
Coexistir: O que significa o direito ao trabalho?
Flavio: Eu sempre digo o seguinte: o trabalho é um direito humano. Nós temos que reconhecer que a pessoa tem o direito de trabalhar. Nem a sociedade, nenhuma autoridade, nenhum familiar e nem mesmo um pai ou uma mãe – no meu entendimento – tem o direito de privar a pessoa do direito ao trabalho. Todos sonham em ter autonomia, não é mesmo? É isso que o trabalho proporciona. Então, conceitualmente, o ápice do processo de autonomia é a pessoa poder se manter. E nós entendemos que uma pessoa que não chega ao mercado de trabalho, por mais que ela tenha tido outras conquistas no âmbito pessoal, ela ainda é dependente.
“Impedir uma pessoa de trabalhar é impedi-la da própria vida. O trabalho e dá acesso a tudo na sociedade.”
Coexistir: E o que o trabalho proporciona para essa pessoa?
Flavio: Podemos afirmar que traz autonomia, autoestima, empoderamento. Nós sabemos que o trabalho define um projeto de vida, não é? Quando nós trabalhamos com educação vocacional, por exemplo, nós sabemos que a pessoa não está escolhendo somente uma profissão. Ela está escolhendo a vida que quer ter. Por isso, toda pessoa tem que ter o direito ao trabalho assegurado, porque é isso que vai permitir com que construa a vida que deseja ter.
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O Instituto Jô Clemente é uma Organização da Sociedade Civil, sem fins lucrativos, que previne e promove a saúde das pessoas com deficiência intelectual, apoia sua inclusão social, incide na defesa de seus direitos, produzindo e disseminando conhecimento.
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