- novembro 24, 2020
- Postado por: Rafael Kosoniscs
- Category: Reflexão
Acredito que como muitas outras pessoas, eu já tinha me preparado para fazer uma publicação no dia 20 de novembro em celebração ao Dia da Consciência Negra. Porém, fui surpreendida com a morte brutal do João Alberto Silveira Freitas.
Confesso que precisei de alguns dias para conseguir absorver tudo que vi e li sobre o caso, antes de vir aqui dividir meus pensamentos com vocês.
O ano de 2020 tem sido desafiador em vários aspectos e não somente pela pandemia de COVID-19. Este foi um ano em que as mazelas e desigualdades da sociedade foram expostas e podemos enxerga-las a olho nu. Ou seja, não dá mais para colocar nossa “sujeira” embaixo do tapete e fingir que elas não existem.
Durante muito tempo fingimos que não existe racismo no Brasil e por isso a fala do vice-presidente não me surpreende. O fato de não haver uma segregação explícita – como ocorre em alguns países ou aconteceu em alguns momentos da história –, não quer dizer que aqui as pessoas negras não sejam discriminadas diariamente. A única diferença é que vivenciamos o racismo de forma mais sutil e velada, por isso, não se deixe enganar, o racismo existe, é estrutural e sistêmico.
Em outras palavras, o caso do João Alberto não é uma situação isolada.
Segundo a ONU, a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. O Atlas da Violência 2020 aponta que os casos de homicídio da população negra aumentaram 11,5% em uma década. Enquanto que, no mesmo período avaliado (2008-2018), a taxa entre não negros (brancos, amarelos e indígenas) fez o caminho inverso, apresentando queda de 12,9%.
Situação não muito diferente quando olhamos para as mulheres negras, pois neste mesmo relatório podemos ver uma redução de 11,7% no homicídio de mulheres não negras, ao mesmo tempo em que subiu para 12,4% os casos com vítimas negras. Se considerarmos somente o ano de 2018, 68% das mulheres assassinadas no país eram negras.
Além disso, essa realidade também se reflete na segurança pública. Conforme relatório elaborado pela Rede de Observatórios da Segurança, as pessoas negras representam 75% das vítimas em ações policiais no país.
Como eu disse antes, o racismo é estrutural e sistêmico, o que quer dizer que ele não se reflete somente em casos de violência. O racismo está presente no nosso dia a dia, basta querermos enxergá-lo.
As pessoas negras representam 56% da população brasileira, mas elas estão longe de ocupar uma posição representativa na sociedade brasileira. Embora os dados da PNAD Contínua 2019 (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio) evidenciem que, pela primeira vez, a população negra seja maioria no ensino superior, ainda é minoria em posições de liderança nas empresas e continua sub-representada na política.
Um levantamento recente realizado pelo Vagas.com demonstra que menos de 5% dos profissionais negros ocupam posições de gerência ou diretoria, bem como que a maioria das pessoas negras estão em áreas operacionais (47,6%) e técnicas (11,4%).
Além da mortalidade por COVID-19 ser maior entre as pessoas negras, um estudo publicado neste mês pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômicos) aponta que a pandemia aprofundou a desigualdade racial no mercado de trabalho. Entre o 1º e o 2º semestre de 2020, cerca de 6,4 milhões de pessoas negras ficaram desempregadas ou deixaram de procurar emprego por falta de perspectiva. Já quando consideramos a população branca na mesma situação, o número é de 2,4 milhões.
No âmbito político, ao vermos os resultados dessa última eleição, mesmo com o aumento expressivo de candidatas e candidatos negros, a população negra continua sub-representada nas instâncias de poder. Das 317 candidaturas às prefeituras nas capitais do país, somente 107 eram de pessoas negras (87 homens negros e 20 mulheres negras). Além disso, a cada 10 prefeitos eleitos no primeiro turno, somente 3 são negros.
Contudo, ao olharmos para as câmaras municipais começamos a ver uma mudança importante. De todos os vereadores eleitos em 2016, somente 42% eram pessoas negras. Já nessa eleição, de acordo com os dados levantados pelo site Gênero e Número, 44% das cadeiras nas câmaras municipais das capitais brasileiras serão ocupadas por pessoas negras no próximo ano.
Aqui chegamos no ponto crucial dessa conversa. O que todos estes dados demonstram?
Infelizmente, só paramos para falar sobre racismo quando algo violento como a morte do João Alberto acontece. Porém, raramente pensamos o racismo como um sistema de opressão e que cotidianamente nega direitos e violenta a população negra. Nós naturalizamos a desigualdade racial e com isso também nos isentamos da responsabilidade quando algo assim acontece.
Que fique claro, não estou de forma alguma defendendo o Carrefour ou afirmando que eles não são responsáveis pela morte do João Alberto. Pelo contrário, devemos protestar, boicotar, fazer o necessário para cobrar uma resposta e uma ação efetiva da parte deles, mas também devemos olhar para nós mesmos e nos perguntar: o que nós estamos fazendo para mudar essa realidade tão cruel?
Quando eu digo nós, me refiro a cada pessoa não negra que esteja lendo esse desabafo. Isso porque, como reforça Djamila Ribeiro em Pequeno Manual Antirracista, “o racismo foi inventado pela branquitude, que como criadora deve se responsabilizar por ele. Para além de se entender como privilegiado, o branco deve ter atitudes antirracistas” (p.36).
Portanto, mais do que estar ciente de todo meu privilégio como mulher de descendência asiática, cisgênero, heterossexual, nascida na região central de São Paulo em uma família de classe média, quero que esse texto seja um chamado para a ação.
Quero que a gente reflita no que podemos fazer para além de um post nas redes sociais ou somente cobrar uma resposta em situações como essa.
Enfim, quero que todos os dias possamos ser antirracistas, para que um dia (num futuro próximo) possamos afirmar que não existe racismo no Brasil e casos assim deixem de acontecer.
Para isso, precisamos começar a aceitar e a nos reconhecer como parte dessa estrutura racista que matou o João Alberto, o João Pedro, a Ágatha Félix, o Evaldo dos Santos Rosa e tantas outras pessoas negras.
Então, você vem comigo
Por Thays Toyofuko