- fevereiro 9, 2024
- Postado por: Coexistir
- Categories: Inclusão, Mulher
A Constituição, ao consagrar a igualdade de todos perante a lei e estabelecer a paridade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, ressalta a necessidade de equidade, reconhecendo que medidas diferenciadas são essenciais para mitigar desigualdades históricas e estruturais.
Esse entendimento reflete o compromisso do texto constitucional em promover não apenas a igualdade formal, mas também a igualdade substancial, por meio de políticas compensatórias que buscam equilibrar as disparidades de gênero existentes na sociedade, incorporando ao texto constitucional o poder dever do Estado em promover um ambiente de justiça social e equidade.
A trajetória em direção à igualdade de gêneros e à proteção da mulher perpassa um espectro amplo de ações legislativas e institucionais ao longo dos 35 anos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.
O ano de 2023, em particular, assinala um período significativo nesse percurso, marcado pela promulgação de uma série de leis, decretos e emendas que fortalecem a estrutura de direitos e obrigações igualitárias entre os gêneros e estabelecem salvaguardas robustas para a proteção da mulher em múltiplos aspectos da vida social e privada.
Lei nº 14.550/2023
No front da proteção contra a violência à mulher, a Lei nº 14.550/2023[1], que revisa dispositivos da Lei Maria da Penha, destaca-se por sua abordagem abrangente e ágil. A desburocratização do acesso às medidas protetivas e a autonomia concedida a essas medidas refletem um entendimento profundo das urgências e das complexidades envolvidas nos casos de violência doméstica e familiar. Ao simplificar e acelerar o processo de obtenção de medidas protetivas e reconhecer a palavra da vítima como suficiente para a concessão de proteção, o Estado demonstra um compromisso genuíno em garantir segurança e justiça imediatas para as mulheres vítimas de violência.
Não é Não
Ainda nesse plano, em 29 de dezembro de 2023, foi promulgada a Lei nº 14.786/2023[2], conhecida como “Não é Não”, representa um avanço significativo na proteção legal das mulheres contra o constrangimento e a violência em ambientes como casas noturnas, boates e shows onde há venda de bebida alcoólica. A legislação impõe aos estabelecimentos a responsabilidade de oferecer suporte imediato às vítimas, incluindo a proteção contra agressores, acesso a informações sobre direitos e ações rápidas e eficazes para assegurar a segurança e a dignidade da mulher. Adicionalmente, os locais são obrigados a ter pessoal qualificado para seguir o protocolo, além de preservar evidências e isolar áreas de ocorrência de violência.
Contudo, a restrição da aplicabilidade da lei a espaços específicos onde ocorre a venda de bebida alcoólica levanta questões críticas. Limitar o escopo da proteção a tais ambientes acaba inadvertidamente reduzindo a abrangência da proteção oferecida às mulheres, deixando desprotegidos locais onde o constrangimento e a violência também ocorrem, mas que não se enquadram nas categorias especificadas pela lei.
Apesar de representar uma conquista, essa limitação acaba por comprometer a eficácia da legislação em abordar integralmente o problema da violência contra a mulher, sugerindo a necessidade de uma revisão e expansão do alcance das medidas para assegurar uma proteção mais ampla e inclusiva.
Igualdade salarial
Noutro giro, a Lei da Igualdade Salarial (Lei nº 14.611/2023[3]), promulgada em 3 de julho de 2023, emerge como um símbolo da luta contra a discriminação de gênero no ambiente de trabalho, atenuando a obrigatoriedade de remuneração igualitária para funções equivalentes, independentemente do gênero, já antes prevista no artigo 461 da CLT, com a redação dada pela Lei 1.723/1952.
A lei, além de impor sanções para o descumprimento, trouxe como inovação a instauração de um regime de transparência e prestação de contas, exigindo das empresas a divulgação de relatórios remuneratórios, bem como a previsão de indenização por danos morais.
Essa medida é um passo estratégico na desarticulação das estruturas invisíveis que perpetuam historicamente as disparidades salariais entre homens e mulheres.
Políticas tributárias
A recente Emenda Constitucional nº 132/2023, que inaugura a primeira fase na reforma tributária brasileira, marca mais um passo significativo na jornada para mitigar as disparidades de gênero. Esta emenda enraíza na ordem constitucional o compromisso do Estado com a igualdade de gênero, evidenciado pela adoção de políticas tributárias voltadas à equidade, como a redução ou isenção de impostos sobre produtos essenciais à saúde menstrual.
Embora a legislação complementar necessária para a plena implementação da reforma tributária ainda esteja pendente e um período de transição anteceda a sua total efetivação, é inegável que a inclusão da essencialidade dos produtos de cuidados com a saúde menstrual no texto constitucional, e a consequente previsão de alívio tributário para esses itens, já representam um avanço substancial. Este progresso não apenas combate à pobreza menstrual, mas também promove a garantia dos direitos fundamentais das mulheres, sublinhando a responsabilidade do Estado em endereçar e remediar as desigualdades de gênero em todas as suas facetas.
A medida não apenas alivia o fardo financeiro sobre as mulheres, mas também representa o reconhecimento da necessidade de se abordar questões de gênero de maneira holística, incluindo a esfera econômica e fiscal.
Desigualdade persiste, mas é preciso celebrar as conquistas
Apesar dos significativos avanços legislativos, é crucial reconhecer que a desigualdade de gênero ainda persiste na sociedade contemporânea. A abordagem desigual em favor das mulheres, especialmente no contexto das legislações recentes, reflete a perspectiva de que, devido às desvantagens históricas e sistêmicas enfrentadas pelas mulheres, medidas específicas e direcionadas são necessárias para alcançar a verdadeira igualdade substancial.
A evolução da legislação, embora tenha um papel crucial, não erradica instantaneamente as raízes profundas da desigualdade enraizada na estrutura social historicamente. Contudo, ainda que um cenário ideal nos pareça distante, as conquistas em termos de direitos regulamentados devem ser celebradas, pois representam um ponto de partida vital no combate à desigualdade sistêmica e na proteção dos direitos da mulher.
Cada lei e emenda promulgada é um passo em direção a uma sociedade mais equitativa, servindo tanto como um reconhecimento dos desafios enfrentados pelas mulheres quanto como um compromisso para a mudança progressiva.
Os avanços legislativos recentes no Brasil compreendem uma resposta do Estado em face do esforço contínuo da comunidade jurídica e política em promover a igualdade de gênero e proteger os direitos das mulheres. Embora ainda haja um longo caminho a percorrer, essas mudanças legais são fundamentais na construção de uma sociedade mais justa e equitativa, em que a igualdade de gênero não seja apenas um ideal, mas uma realidade vivida.
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14550.htm[2]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14786.htm