O procurador do Trabalho Tiago Ranieri, do Ministério Público do Trabalho de Goiás (MPT-GO), desenvolve desde 2018 o projeto “Mais um Sem Dor”. A iniciativa acolhe, qualifica e encaminha para o mercado de trabalho formal pessoas LGBTQIAPN+, principalmente trans.

Em seis anos, 85 empresas aderiram à iniciativa e foram reconhecidas pelo MPT-GO com o selo social “Empresa Amiga da Diversidade”.

Mais de 2,5 mil pessoas receberam qualificação em 22 cidades daquele estado. Todos foram encaminhados a entrevistas de emprego e 60% foram empregadas formalmente; 30% tornaram-se empreendedores e 10% aderiram a outras formas de subsistência. O investimento nos últimos cinco anos foi de R$ 6,5 milhões.

O projeto chamou a atenção do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª  Região (TRT-RS). A juíza Lúcia Rodrigues de Matos, uma das coordenadoras do Comitê, conheceu a iniciativa e o procurador Tiago na 1ª Reunião dos(as) gestores(as) nacionais e regionais do Programa de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade da Justiça do Trabalho. O evento aconteceu em 24 e 25 de junho, no TRT da 18ª Região (GO).

Também aconteceu, no mesmo período, a quarta aula do Curso “Letramento em Diversidade: (re) pensando o Direito do Trabalho a partir dos territórios”, intitulada “O que o Direito do Trabalho tem a aprender com pessoas trans e travesti?”.  O curso foi realizado pelo Programa de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade do TST, em parceria com o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Assessores e Servidores do Tribunal Superior do Trabalho (Cefast).

Conforme a juíza Lúcia, em uma sociedade que mata pessoas por serem quem são, a desigualdade estrutural do mundo do trabalho impõe às pessoas trans e travestis condição de particular vulnerabilidade.

“Se no mesmo corpo se entrecruzam condições outras de vulnerabilização, como raça, etnia, classe social e condições de pessoa idosa ou com deficiência, a exclusão será ainda mais severa”, afirma a magistrada. “Ainda precisamos avançar muito no caminho da concretização do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana no que se refere às dimensões da identidade de gênero e orientação sexual, o que passa pela desconstrução de estereótipos e, sobretudo, pela eliminação de todas as formas de violência contra as pessoas, inclusive a consistente em vedação de acesso ao trabalho digno”, complementa.

Confira a entrevista que o procurador Tiago Ranieri concedeu à Secretaria de Comunicação Social do TRT-RS

Qual a sua atuação no projeto? Desde quando?

Sou coordenador do Projeto “Mais Um Sem Dor” desde 2018. O contato com o tema se deu em 2017, após um letramento na ESMPU (Escola Superior do Ministério Público da União) e a partir de uma autocrítica institucional tomei consciência de que não existiam inquéritos civis (procedimentos investigatórios) no âmbito do MPT/GO sobre discriminação por transfobia, homofobia, lgbtfobia, de um modo geral. Obviamente, não existiam porque a esse público, em especial o recorte trans, é negado o trabalho decente e digno.

É um grupo compulsoriamente “empurrado” para prostituição na sua maior parte ou para informalidade em trabalhos precários.  

Da mesma forma  acontece no Judiciário Trabalhista: os números de ações que tratam do tema são ínfimos perto do quantitativo de outras ações e temas que tramitam na justiça especializada. 

É uma exceção tais grupos, em especial a população trans, estarem inseridos numa relação formal de trabalho. 

Dialogar e trabalhar com essa temática é também falar e dialogar com minha existência, pois sou um homem gay – um procurador do Trabalho gay. Existência que só foi possível ser autêntica algum tempo após ingressar numa carreira que me deu a liberdade para ser quem eu sou, ou, no mínimo, não reduziu minha identidade e potencialidades na minha orientação sexual. 

Por óbvio, desenvolver esse processo de autenticidade e coragem de ser quem se é levou um tempo de silenciamento, sofrimento e maturidade. E a exposição dessa minha intimidade em alguns espaços que ocupo se dá, unicamente, por ser um ato político e necessário para se naturalizar a diversidade e potencializá-la, bem como para que outros que carregam a diversidade, como eu, possam ter referência de que podemos ocupar qualquer espaço que desejarmos. A nossa diversidade não deve ser critério objetivo ou subjetivo para qualquer tipo de exclusão, seja no mundo do trabalho, seja em outros espaços sociais. 

Na prática quais são as ações?

São vários e ricos os encaminhamentos, desde o acolhimento a tais grupos invisibilizados pelo Estado e Sociedade, embora saibamos as esquinas onde estão, até o acesso à qualificação profissional e ao encaminhamento ao mercado formal de trabalho a partir da oportunidade de empresas que aderem ao projeto e estão abertas à diversidade.

A mudança se deu também na própria instituição, o MPT, que passou a conviver mais com esses sujeitos de direitos e a naturalizá-los dentro da sua diversidade. O MPT possui hoje cotas afirmativas, para pessoas trans, no concurso para Procuradoras e Procuradores do Trabalho. 

Houve também a construção de diversas pontes com outras instituições, visando o aprimoramento e fomento de políticas públicas e serviços que a essa população sempre foi negada. 

Houve adoção do projeto em outros estados?

Há iniciativas parecidas. A atuação está sendo pavimentada em outros estados pela Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) levando-se em conta as  especificidades regionais e locais, sobretudo os parceiros.

No entanto, posso afirmar que em termos de continuidade, seis anos, o “Mais Um Sem Dor” é o mais longevo, e isso se dá e se deu, sobretudo, com a parceira sólida construída com o TRT-18, que sempre nos apoiou desde o primeiro momento, e com o Senai/GO (entidade que operacionaliza as qualificações).

Como alcançar o respeito à diversidade de forma efetiva?

Somente se alcança o respeito à diversidade quando essa diversidade é naturalizada e ocupa todos os espaços na sociedade, sobretudo os espaços de poder, de decisão; os espaços que hoje são ocupados pela cis-heteronormatividade masculina e de cor branca. 

Não é possível ter uma sociedade justa e solidária, como a pensada pela Constituição, se não houver pluralidade e diversidade em quem toma as decisões nas esferas de poder (executivo, legislativo e judiciário), bem como nas instituições essenciais à justiça. Não há riqueza econômica se essa diversidade está umbilicalmente ligada à desigualdade, pobreza e falta de oportunidades.

Rio Grande do Sul 

Antes do caminho para a inserção no mercado de trabalho, longas jornadas são trilhadas pelas pessoas trans. Esse acompanhamento passou a ser feito em ambulatórios com serviços especializados, a partir de 2021, no Rio Grande do Sul, por meio do programa estadual “Assistir”.

Santa Maria, na Região Central, recebeu o primeiro Ambulatório Trans do interior do estado.

As portas do serviço foram abertas em janeiro de 2022. Hoje, o ambulatório atende 135 municípios e é referência para as regiões centro-oeste, missioneira e dos vales.

São oferecidos atendimentos psicológicos, psiquiátricos, clínico-médicos e por endocrinologista. De acordo com o coordenador do serviço, o psicólogo especialista em estudos de gênero Thadeu de Oliveira Lucca, mais de 1,5 mil consultas foram realizadas no período.

O acompanhamento tem a duração de aproximadamente um ano, até a opção pela cirurgia de redesignação sexual, momento em que a pessoa é dirigida ao Programa Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital de Clínicas (Protig), em Porto Alegre.

Lucca, que atualmente pesquisa Preconceito e Vulnerabilidade no programa de mestrado da PUC-RS, diz que o tema de inserção no mercado de trabalho é intrínseco ao processo. Em relação à baixa empregabilidade do público trans, o psicólogo questiona os critérios que levam as empresas a não selecionarem esse público.

“Por que uma pessoa trans não tem as mesmas garantias que outras pessoas? O fato de ser uma pessoa cis/hétero não torna o profissional melhor ou evita que haja problemas com o trabalho. A ideia de que a pessoa trans não atende às caracterísiticas da sociedade cis/hétero faz com que seja anulado o potencial intelectual ou a capacidade operacional ou estratégica dessa pessoa?”, provoca o psicólogo.

Números

De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), apenas 4% das pessoas trans e travestis estão no mercado de trabalho formal. Somente 0,02% têm acesso ao Ensino Superior. Leia a matéria completa.Abre em nova aba

Em evento alusivo ao Dia Internacional contra LGBTIfobia, realizado pela Comissão de Direitos Humanos do Senado, no último dia 16 de maio, o juiz do trabalho Valter Souza Pugliesi (TRT-19), apresentou dados que mostram um aumento no número de processos ligados à transfobia. De acordo com o magistrado, entre 2017 e 2019, foram identificados na Justiça do Trabalho 69 processos relacionados à transfobia. Entre 2020 e 2022, o número saltou para 295. Depois, apenas em 2023, foram ajuizados 107 processos por essa razão. Leia mais aquiAbre em nova aba.

Pelo 15º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Em 2023, houve 155 mortes de pessoas trans no Brasil, sendo 145 casos de assassinatos e dez que cometeram suicídio após sofrer violências ou devido à invisibilidade trans. O número de assassinatos aumentou 10,7%, em relação a 2022, quando foram registrados 131 casos. Dossiê Antra 2024. 

Fonte: Tribunal Regional do Trabalho 4ª Região Rio Grande do Sul, por Sâmia de Christo Garcia, 14.08.2024

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