Precisamos falar dos desafios do envelhecimento de pessoas com deficiência intelectual em meio à pandemia

Mudança repentina na rotina traz impactos e pode gerar estresse mental, podendo provocar situações de violência, ansiedade, depressão, entre outros problemas

*Leila Castro

Desde o mês de março, que foi marcado pelo início da quarentena em diversos lugares do país, mudamos drasticamente nossa rotina e as principais atividades do nosso dia a dia. Fomos inseridos em um contexto em que centenas de milhares de pessoas em todo o mundo já perderam vidas para a COVID-19 e milhões de outras seguem se recuperando. Essa situação, inesperada em todo o mundo, testou a capacidade dos cientistas de identificarem com agilidade os grupos mais vulneráveis, assim como os sistemas de saúde do Brasil e de outros países, que tiveram de se preparar com urgência para receber e tratar ou acompanhar esses casos. Tudo foi muito rápido. Em um prazo muito curto, de poucos dias, muitos adotaram o home office permanente no trabalho, reduzimos ao máximo nossas saídas às ruas e passamos a realizar com mais frequência compras de produtos e solicitações de serviços via internet.

Essa mudança repentina de hábitos e rotinas não foi fácil e ainda repercute em grupos de maior vulnerabilidade, que acabam por não ser contemplados em diversas soluções apresentadas para se enfrentar essa nova realidade. Entre esses grupos, estão as pessoas com deficiência intelectual em fase de envelhecimento. A deficiência intelectual em si não é uma comorbidade, contudo, é importante destacarmos que essa parcela da população corre maior risco, considerando as comorbidades ao longo da vida. Na síndrome de Down (T21), por exemplo, problemas cardíacos hereditários, níveis de obesidade e problemas respiratórios são bastante comuns.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que a parcela da população com 60 anos ou mais no país deve duplicar até 2050 e atingir a marca de 74,6 milhões pessoas. O Censo Demográfico de 2010 indica ainda que cerca de 45 milhões de pessoas apresentam algum tipo de deficiência no Brasil. Entre os indivíduos com deficiência intelectual, a estimativa é de que haja 2,6 milhões de pessoas, sendo 537 mil acima dos 60 anos.

Com o avanço da biomedicina e ações socioassistenciais, como a inclusão social, pessoas com deficiência intelectual estão cada vez mais longevas, o que demonstra um rompimento no paradigma quanto à expectativa de vida. Com isso, surge a necessidade de se elevar a demanda por cuidados e a formação de pessoas que se disponham a acompanhar pessoas idosas por um tempo maior, resultado de mudanças significativas na estrutura familiar, tais como: diminuição na composição familiar, por conta da queda expressiva das taxas de fecundidade, o que reduz o potencial assistencial familiar; e significativa inserção da mulher no mercado de trabalho, sendo que no passado era a principal responsável pela atenção dos cuidados a todo núcleo familiar.

Dados do estudo multicêntrico Saúde, Bem Estar e Envelhecimento (SABE), realizado no município de São Paulo e divulgado em 2005, na Revista Brasileira de Epidemiologia, indicam que boa parte da população atual com 60 anos já demonstra níveis significativos de fragilidades em suas condições de vida e saúde, o que reforça a necessidade de prestação de cuidados contínuos e prolongados, especialmente no momento em que vivemos. Atualmente, porém, as famílias não conseguem suprir mais que 50% das demandas associadas a esses cuidados. Além disso, o Estado ainda não tem políticas públicas que garantam esses apoios.

O estresse associado ao medo de contrair a doença, o distanciamento social e as medidas de quarentena em vigor podem ter um impacto na saúde mental de algumas pessoas. Ao considerarmos que as pessoas com deficiência intelectual normalmente seguem suas próprias rotinas e necessitam ser preparadas para mudanças, essas situações podem desencadear problemas relacionados a um grande estresse mental, gerando situações como o aumento da violência, verbal ou física, elevação nos níveis de ansiedade e depressão, maior busca por psicotrópicos, problemas com familiares e cuidadores, entre outras situações. Quanto maior a idade, mais evidentes são os sinais de estresse, justamente pela dificuldade maior que a pessoa com deficiência intelectual tem de se adaptar a mudanças repentinas na rotina e compreender o que está acontecendo e os motivos da necessidade do isolamento, do uso de máscaras e outros aspectos.

Em 2019, realizamos pelo Instituto Jô Clemente (antiga Apae de São Paulo), o I Seminário Internacional sobre o Envelhecimento da Pessoa com Deficiência Intelectual, que trouxe contribuições científicas para discutirmos os desafios que pessoas com deficiência intelectual se deparam, considerando todas as complexidades e heterogeneidades. Na época, não imaginávamos que passaríamos por uma pandemia como essa, mas os pesquisadores nos ajudaram a compreender pontos importantes para estabelecermos novas perspectivas, o que tem nos ajudado a contribuir com famílias que têm um membro com deficiência intelectual em fase de envelhecimento. Hoje, mais do que nunca, sentimos a necessidade de democratizar o conhecimento acerca desse tema. Por isso, desde o final de agosto, quando teve início a Semana Nacional da Pessoa com Deficiência, estamos realizando lives sobre Envelhecimento e Longevidade, por meio do Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação (CEPI) do Instituto Jô Clemente. Esse ciclo de conteúdos deve seguir este 1º de outubro, Dia Nacional do Idoso e Dia Internacional da Terceira Idade.

A lição que podemos tirar desse cenário é que estamos todos vulneráveis em razão da heterogeneidade que temos nas sociedades de todo o mundo, mas há grupos de pessoas que acabam ficando invisíveis nesses momentos, como o caso das pessoas com deficiência intelectual em estágio de envelhecimento. Precisamos olhar para essas pessoas, entender suas necessidades e buscar soluções, assim como fazemos em diversas outras situações evidenciadas pela sociedade.

* Leila Castro é especialista em envelhecimento no Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação (CEPI) do Instituto Jô Clemente (antiga Apae de São Paulo)