- maio 11, 2022
- Postado por: Rafael Kosoniscs
- Category: Inclusão
Think Olga cria laboratório para analisar situação das mulheres na carreira e no empreendedorismo pós-pandemia; segundo dados, retrocesso foi de 30 anos
Marina Dayrell, O Estado de S.Paulo
11 de maio de 2022 |
Como não retroceder a participação feminina no mercado de trabalho? Como manter direitos trabalhistas, na era digital, sem flexibilizar o que as mulheres já alcançaram? Como pensar políticas que vejam o trabalho de cuidado como tarefa de todos? Como criar e conduzir carreiras que deem condições para as mulheres se desenvolverem e se aposentarem, seja no mercado formal, no informal ou no empreendedorismo? Essas e outras questões sobre as mulheres no mercado de trabalho e no empreendedorismo impulsionaram a criação do novo Laboratório de Inovação Social Mulheres em Tempo de Pandemia, da ONG Think Olga.
Durante um ano, a organização irá reunir dados e conversar com especialistas para apontar possíveis caminhos, nas esferas individual, pública e privada, para reduzir problemas que levam à desigualdade de gênero. A primeira parte da pesquisa, a qual o Estadão teve acesso com exclusividade, será lançada nesta quarta-feira, 11.
“No ano passado, vimos que as mulheres retrocederam 30 anos em participação no mercado de trabalho. O que significa isso? Fomos investigar. Os setores que mais encolheram são os que têm as mulheres como principais trabalhadoras, como os serviços domésticos, a educação, a saúde, os serviços sociais e a alimentação. Alguns deles estão em retomada, mas estamos nos perguntando: retomada para quem, se o olhar é pela ótica masculina, branca e tem modus operandi pré-definido?”, questiona Maíra Liguori, diretora de Impacto da Think Olga.
O estudo, cujo tema é “Autonomia das Mulheres: o futuro do trabalho”, debruça-se sobre três autonomias: a financeira, a emocional (estar distante de situações abusivas e degradantes) e a de conhecimento (saber o seu lugar no mundo e acessar o que não se sabe). As análises passam pela Economia do Cuidado, ou seja, o trabalho (remunerado ou não) que envolve atividades para o bem-estar ou a sobrevivência de outras pessoas, como a manutenção de uma casa, a criação dos filhos ou o acompanhamento de pessoas doentes.
Maíra Liguori (à esquerda) e Nana Lima, diretoras de impacto da Think Olga. Entidade conduz estudo sobre situação das mulheres no mercado de trabalho e no empreendedorismo. Foto: Filipe Redondo
“A pesquisa é uma continuação do laboratório anterior, sobre Economia do Cuidado, como a divisão de gênero no trabalho de cuidar amplia as desigualdades. As três esferas de autonomia formam interseções. Não adianta só a autonomia financeira se você está em um relacionamento abusivo, mas a condição financeira e a autonomia de conhecimento são importantes para sair de uma relação abusiva”, explica Nana Lima, cofundadora da Think Olga.
O Estadão Carreira e Empreendedorismo bateu um papo com as duas diretoras de impacto da Think Olga sobre os resultados do estudo e possíveis caminhos para amenizar a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Confira os principais trechos.
Qual é o ponto de partida desse laboratório?
Maíra Liguori: Em 2020, nós começamos a analisar a situação das mulheres na pandemia, em relação à economia do cuidado, à saúde e à violência doméstica. O nosso estudo sobre economia do cuidado foi o que mais teve tração, por ser um momento muito oportuno para olhar para o trabalho invisível e não-remunerado e que acentua desigualdade de gênero. Quando estamos trancadas em casa e o cuidado é a parte mais importante, quem estava cuidando de crianças, idosos e pessoas com comorbidades? As mulheres, enquanto trabalhavam em seus empregos. Os dados mostravam e davam contorno para o que esse cuidado representa na nossa economia e o quanto ele reestrutura a sociedade.
No ano passado, vimos que as mulheres retrocederam 30 anos na participação no mercado de trabalho. O que significa isso? Fomos investigar. Os setores que mais encolheram são os setores que têm as mulheres como principais trabalhadoras, como os serviços domésticos, a educação, a saúde, os serviços sociais e a alimentação. Alguns deles estão em retomada, mas estamos nos perguntando: retomada para quem, se o olhar é pela ótica masculina, branca e tem modus operandi pré-definido?
Todos os avanços que foram conquistados até hoje, e que já perdemos em pouco tempo, foram conquistados por meio de luta e esforço de outras mulheres que chegaram lá. Não dá para contar com um planejamento de retomada e crescimento que nem passa pelo olhar de gênero, que nem contempla as questões sociais. Se estamos 30 anos atrás na luta, vamos ter que continuar lutando 30 anos para voltar para onde estávamos?
O que vocês descobriram com essas análises?
Maíra: Muitos dados que a gente usa já estavam feitos de alguma maneira por outras organizações, mas não necessariamente foram divulgados por elas. Mas tem um dado inédito, que é uma comparação entre a pré-pandemia e o pós. Em 2019, a gente tinha uma taxa de mulheres que empreendiam 1,39 vez mais que os homens. As mulheres brancas empreendiam 48,4% e as negras 50,3%.
Quando fizemos o transporte dos dados para o último trimestre de 2021, vimos que as mulheres estavam empreendendo muito mais. Elas saltaram para 1,54 vez mais que os homens. As mulheres brancas aumentaram para 49,9% e as mulheres negras sofreram uma redução para 48,5%.
Dentro disso, temos a linha de raciocínio da precarização do trabalho, que atinge de formas diferentes as mulheres brancas e negras. As mulheres brancas provavelmente perderam postos formais e foram empurradas para o empreendedorismo, enquanto as mulheres negras estão diminuindo sua participação nele. Ainda não sabemos qual é a correlação, mas existe essa disparidade que chama bastante atenção.
Em termos de empregabilidade, o que diz a junção de todos esses dados?
Maíra: O debate que queremos colocar é o da empregabilidade das mulheres, falando de informalidade e empreendedorismo. Em 2021, tivemos 230,2 mil vagas criadas e ocupadas por homens, enquanto tivemos uma perda de 87,3 mil postos de trabalhos de mulheres (CAGED). Entre 2020 e 2021, 70% das vagas criadas foram no setor informal e esse é o cenário na América Latina. A cada crise global, as vagas formais de trabalho diminuem 4% na região.
Existe toda uma conversa sobre retomada e que nunca tivemos tantos registros de novos MEIs (microempreendedores individuais), mas, na verdade, o que isso significa? Se estamos perdendo espaço nas vagas formais e os MEIs estão aumentando, provavelmente estamos tendo precarização. A gente olha para o MEI como uma noção de empreendedorismo, mas, na verdade, é a sobrevivência, o empreendedorismo por necessidade. A maioria das MEIs foram abertas por mulheres.
Nana Lima: A situação das mulheres em 2022 é que conseguimos ter maior consciência do que acontece quando normalizamos o cuidado associado ao gênero feminino, mas não estamos vendo algo sendo feito para isso, principalmente do ponto de vista constitucional. Do ponto de vista das empresas precisamos fazer muito mais também.
Existe essa retomada, mas demos muitos passos pra trás, informalidade maior, precariedade de trabalho. Celebrar que há muitas mulheres MEIs no Brasil pode cair no romantismo de todo mundo ser o seu próprio chefe. Se a gente não olhar para essas questões, a retomada vai ser para quem já tinha a possibilidade de ter uma retomada econômica e social, para quem já tinha mais privilégios.
O que vocês pretendem fazer a partir desses dados?
Maíra: Tudo isso vai levar para o debate do que significa estar 30 anos atrás no mercado de trabalho e buscar os caminhos. A partir desses dados, nós vamos, por um ano, estudar esse cenário que a gente tem hoje, que é um catalisador das desigualdades de gênero e raça, entender, dar contornos e propor algum tipo de abordagem possível para o encaminhamento das soluções.
O caminho que queremos levar é para a autonomia feminina, não para o lado neoliberal de trabalho do “trabalhe enquanto eles dormem”, mas uma visão “paulofreiriana”, um olhar mais amplo. Entender que existem muitos fatores que compõem a autonomia feminina.
Daqui a um ano, teremos um relatório, que é uma mão na massa com os principais achados e as sugestões que a gente foi aprendendo no meio do caminho e que podem ser aplicadas pelos setores público e privado e pelo indivíduo (tanto dentro de casa quanto um gestor dentro de uma empresa). Encaminhamos soluções e proposições que podem auxiliar no combate à desigualdade.
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De que tipo de autonomia estamos falando?
Maíra: Enquanto estudamos a economia do cuidado e como ela é um dos principais agravantes das desigualdades de gênero, fomos entendendo o trabalho com uma camada de classe que a gente precisava trazer para essa conversa. Falar de remuneração, independência financeira, qual lugar na pirâmide social que essa mulher tem quando ela está ou não trabalhando. O trabalho como sendo o grande foco de investigação para entender o lugar da economia de cuidado na vida das mulheres.
O que entendemos é que falar de autonomia financeira por si só não era o suficiente para garantir a dignidade dessa mulher. Muitas vezes, existem outras questões culturais que estão em volta. Claro que a autonomia financeira é a principal, mas ela não acontece se não estiver ligada com outros fatores, como a autonomia emocional, ou seja, estar distante e livre de situações degradantes e relações abusivas, e a autonomia de conhecimento, como eu leio o mundo, como entendo quem em eu sou, que ações posso tomar.
Existe uma lacuna na educação e na formação intelectual das pessoas e, principalmente, das mulheres. Então, muitas vezes, a privação e as questões que nos atravessam impedem as mulheres de ler contextos: como participo de uma reunião, qual é o código de vestimenta ali, o código de comportamento, como olho para as minhas habilidades e as valorizo, mesmo que elas não sejam habilidades com certificação formal. Uma mulher, mãe solo de periferia, que toca uma casa sozinha, tem habilidades de gestão, tem um repertório de conhecimento que pode ter passado longe dos livros, mas é conhecimento e precisa ser valorizado como tal.
Já existem exemplos de iniciativas que pensam a retomada econômica com um olhar para a desigualdade de gênero?
Maíra: Algumas economias estão lidando melhor com isso. Uma delas é dos Estados Unidos, que está olhando para a economia do cuidado como pilar de retomada de crescimento. Uma das frentes do governo é fomentar o ciclo de cuidado de crianças, idosos e enfermos não-hospitalizados com incentivo fiscais, formações e ações para incentivar esse mercado. Isso é um olhar que contempla a questão de gênero para a retomada econômica.
Na Nova Zelândia, eles estão estudando a paridade de salários entre homens e mulheres não só de quem tem a mesma função, mas estão criando índices e parâmetros para que as profissões possam se equivaler, em relação a anos de estudo e nível de complexidade. Por exemplo, uma babá tem um trabalho que tem um nível de treinamento, complexidade e horas de função que se equivale a um mecânico de avião. Quanto é o salário de um e de outro? É um trabalho pioneiro e piloto, que ainda está em fase de elaboração, mas que para nós traz uma valorização do cuidado de trabalho que nunca houve antes na história.
Ainda temos a Argentina que criou o orçamento público feito a partir das lentes de gênero, que as proporcionalidades dos investimentos contemplam a economia do cuidado, além da aposentadoria para mulheres que cuidam de filhos e netos.